Comentários indelicados sobre o peso das pessoas até o total descaso com a saúde delas vieram à tona nas redes sociais com a hashtag #gordofobiamédica. Para essas pessoas, ir ao médico nem sempre é fácil. Parece que todos os problemas se resumem à quantidade excessiva de gordura corporal. Só que isso nem sempre é verdade e, muitas vezes, essamistura de preguiça e desdém com a qual alguns profissionais tratam pacientes obesos é prejudicial à saúde.
A escritora Iris Figueiredo, 25, é uma dessas vítimas. Em 2016 ela machucou o joelho direito em uma aula de dança. De médico em médico, a história era sempre a mesma: o peso seria o problema. No receituário, anti-inflamatórios e sessões de fisioterapia. Passaram-se seis meses até que Iris encontrasse um ortopedista que resolvesse o problema: o caso era cirúrgico. “Os outros médicos nem investigaram para ver que eu tinha rompido o ligamento, só diziam que eu estava gorda e que seria essa a causa da dor.”
“Fui magrinha durante a infância. Engordei ao longo dos anos e cheguei aos 100 kg - foi quando rompi o ligamento. Mas não tinha a ver com o peso: tenho hipermobilidade, minhas articulações são frágeis, algo que demorei para descobrir. As dores eram relacionadas à fibromialgia e à frouxidão ligamentar.”
Certa vez, Iris foi a uma alergista para tentar descobrir as causas de uma dermatite, doença inflamatória que gera vermelhidão na pele. “Ela não me examinou. Só disse para cortar glúten e lactose e que, se eu emagrecesse, poderia melhorar. Outra vez fui tratar cravos e o médico já me encaminhou para um endócrino e uma nutricionista, dizendo que eu estava gorda.”
“Essa maneira de lidar é fruto de má formação. Os médicos hoje não têm paciência —para eles, ou a doença é causada por um vírus ou é de fundo emocional”, diz Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica.
“O médico mal formado usa a obesidade para se livrar do paciente, assim como diz para uma pessoa com tosse parar de fumar”, afirma Lopes, crítico da profusão de escolas médicas e adepto do discurso de que a tecnologia e o excesso de exames laboratoriais e de imagem roubaram espaço do humanismo na medicina.
“Busca-se uma justificativa para fazer uma consulta de cinco minutos sem se preocupar com o conjunto. Obesidade é doença, mas médico não é juiz, tem que analisar, medicar, mas não julgar”, diz.
Para Otelo Chino Junior, endocrinologista e conselheiro do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), o comportamento dos médicos é um reflexo do que existe na sociedade.
“Isso gera uma diferença de tratamento brutal recebida por quem é obeso e quem não é”, diz. “Quase nunca os comentários sobre o peso, diferentemente do que pensam os médicos, são vistos como inofensivos. Falta treinamento para saber lidar com a questão e isso deve ser objeto de simpósios e de encontros, especialmente nas especialidades que atendem obesos.”
Em cinco anos de atuação no conselho, porém, Chino Junior diz nunca ter participado de julgamentos de outros médicos com base nesse tipo de conduta discriminatória.
Por outro lado, a obesidade permanece um dos problemas médicos mais relevantes na atualidade, sendo um fator importante de risco para diversas doenças, como diabetes, infarto, AVC, problemas nas articulações e alguns tipos de câncer. “Cada vez mais se reforça o conceito de que, se um indivíduo é obeso, dificilmente ele é saudável”, diz o endocrinologista Antonio Carlos Nascimento.
Mesmo com esportes, bons indicadores em exames e a ausência de doenças como colesterol alto e hipertensão, o obeso tem maior risco de morrer precocemente ou de ter problemas graves de saúde em relação a um indivíduo magro nas mesmas condições.
Ainda assim, não faz sentido maltratar um obeso simplesmente por ele ser quem ele é, diz Nascimento. “O gordo não tem culpa. Simplesmente responde a substâncias no cérebro, que geram desejo e comportamentos. Não importa se uma pessoa tem doenças ou não, a dificuldade para emagrecer é sempre muito grande.”
No caso de Iris, nem a saúde mental passou incólume. “Um psiquiatra me disse: ‘Por que não pensa em emagrecer? Vai ajudar com seus problemas de autoestima e depressão.’ Mas eu só queria um encaminhamento para conversar com um psicólogo.” “A atitude de um médico pode até provocar suicídio. Já vi isso acontecer. Ele tem que ter consciência de que as consequências podem ser desastrosas”, diz Chino Junior.
Não queremos que o primeiro olhar do médico já limite a chance de ter um atendimento humanizado e que o impeça de descobrir a real razão das dores ou do problema”, diz Iris. “Muitas vezes não há anamnese. A consulta é rápida, fria, distante…”
A escritora acabou de lançar seu quarto romance infantojuvenil, “Céu Sem Estrelas” (Seguinte, 304 págs. R$ 39,90). “Cecília é uma menina gorda e sofre com os comentários que a família faz sobre o corpo dela. Ela sente que ser gorda é errado”, conta Iris.
Seria uma história com toques autobiográficos? “Há inspirações”, diz a autora. Cecília em algum momento percebe que ser gorda não é determinante, mas que a jornada de aceitação do corpo, passando por transtornos de ansiedade, é bem difícil. “Ela entende que precisa tratar o corpo dela com gentileza. Também vê que não dá para impedir que as pessoas tenham preconceito, mas que é possível trabalhar em sua mente para não se deixar afetar.”
Fonte: Folha de S. Paulo | Portal da Enfermagem
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